Andante,Andante...
"Nenhum momento de felicidade terá sentido se não for compartilhado"
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HISTÓRIAS QUE ME CONTAVAM "PARTINDO A GAITA"





Povoado de Irati,janeiro de l930.O assunto do momento era
a "festa da colheita" no Coxilhão das Ameixeiras,distante aproximadamente uns 100 Km daquêle lugarejo.
Na casa de "Tia Mariquinha",assim era como lhe chamavam,tudo pronto para a longa viagem à caminho da festa.
Seriam tres dias de muitas festividades,música,danças e comilanças.O mutirão para a colheita e tudo finalizando com a celebração à São Sebastião,para a qual haviam sido escalados dois capelães e tres rezadeiras da amizade de Mariquinha a fim de reforçar a cantoria dos demais "rezadores" daquela região.
Partiriam em tres carroções todos enlonados por tôldos reforçados como proteção contra o sol muito forte e as inesperadas chuvas de janeiro,além de servir de cobertura na eventualidade de um pouso no meio do caminho.
Na madrugada de quinta feira dera-se início ao carregamento dos carroções.Canastras com roupas novas,as violas dos capelães,as trempes,farnéis de comida para a viagem e os famosos e comentadíssimos "marrecos recheados",especialidade de tia Mariquinha.Os meninos,eufóricos,punham carroça a dentro tudo de que se lembravam.Cuidadosa e sorrateiramente,ajustara-se por debaixo de um banco a sanfona que pertencera ao finado esposo de dona Mariquinha.Os dois meninos,Jango e Elias,eram loucos por ela,apesar de ao abri-la conseguirem tão somente um "feijão com couve" como costumavam dizer-lhes os seus irritados ouvintes.
O clima de festa havia despertado a vaidade feminina de dona Mariquinha que naquela madrugada pôs um pouco de lado o seu modo hostil e permitiu-se uma olhada no espelho soltando os longos cabelos pretos e até umas esponjadas do perfumadíssimo pó de arroz "Royal Briar" que andava meio relegado ao abandono de uma gaveta na cômoda de seu quarto.
Do alto de sua posição de líder,deu as últimas coordenadas ,fez tôdas as recomendações para a viagem,após o que,soltando o breque do carroção insitou os cavalos a tomar o rumo do coxilhão.Estradinhas lamaçentas,muito mato,alguns carreadores...E a comitiva ia ganhando a distância.
O dia começava a raiar quando já haviam percorrido pouco mais de uns 30 Km.Os raios de sol,envoltos numa fina camada de serração,feito espadas trespassavam os troncos orvalhados da mata rala por onde agora cruzavam.Podiam-se ouvir os galos e latidos de cachorros anunciando a proximidade do primeiro lugarejo onde fariam uma breve parada.De quando em quando davam de encontro com alguns camponeses à caminho das lavouras e as saudações eram esfusiantes!Dona Mariquinha firmava as mãos às rédeas e os cavalos obedeciam-lhe num trote compassado.A carroçeira,saudosa dos parentes a quem iria reencontrar-se,deixava transparecer a sua altivez e naquela face normalmente sisuda,delineava-se agora os traços de uma mulher bonita,forte e guerreira,a quem todos obedeciam e respeitavam.
Deu-se a parada no local pré determinado e após um farto café da manhã a viagem prosseguiu.Agora debaixo de núvens pesadas prenunciando uma chuva forte.Dona Mariquinha,que costumava angustiar-se quando aprontavam-se as tempestades,calou-se.Apressou o trote dos animais e sob relâmpagos,raios e ventania ,a comitiva prosseguiu regada à uma chuva torrencial que não dava trégua.Foi assim a tarde inteira e quando já quase à noitinha,tiveram a triste costatação de que o rio havia transbordado e a única ponte,por onde fariam a travessia,acabara de ruir.
Um clima de desolação tomou conta dos carroçeiros.A líder desceu da carroça,observou atentamente as duas margens do rio por onde bufavam as correntezas.Suspirou profundamente e determinou o retorno ao povoado de origem.
Um silêncio assombroso,quebrado apenas pelos xoramingos das rodas dos carroções e de vez em quando algumas cantigas chorosas dos capelães e rezadeiras na última carroça.
No assento traseiro do carroção inicia-se uma discussão entre os meninos:
_Eu toco primeiro,dizia Jango.
_Eu sou o mais velho,por isso serei o primeiro a tocar,retrucava Elias.
_Fui eu quem trouxe a gaita,enfatizava Jango.
_Mas fui eu quem ajudou-lhe a esconde-la.Argumentava Elias.
Mariquinha,irritada,fingia não estar ouvindo aquela ladainha.
De repente um dêles apanha a sanfona do esconderijo....
Inicia-se o "feijão com couve"...
Chove à cântaros pelos carreadores,forman-se atoleiros,os cavalos mostram-se inquietos...
A chuva forte desliza aos jarros pelas bordas dos tôldos...
A noite é um breu...Sugere espectros dentro daquêle negrume compacto.
_Agora é a minha vez!....
_Claro que não...
_Só você quer tocar....
_Quero tocar A G O R A!...
_Feijão com couve,feijão com couve,feijão...
Mariquinha estupefata!...
A briga continua,os meninos não se entendem...
A noite de breu já vai muito alta,a líder perde a paciência...
Para o carroção...Param os dois outros logo atrás...
Mariquinha acende uma lanterna à querosene,pendura-a ao toldo do carroção.
Chama por Euzébio,um dos capelães e ordena-o a abrir a sanfona em tôda a sua extensão.
Euzébio lhe obedece...
Mariquinha apanha um facão sob o assento dianteiro e o transpassa de alto à baixo pelo fole da gaita.
Um som esquisito,um quase gemido ecoa na noite escura e a sanfona abre-se em duas.
Tia Mariquinha entrega as partes a cada um dos meninos e determina:
_Agora podem tocar à vontade!...



 
IRATIENSE THUTO TEIXEIRA
Enviado por IRATIENSE THUTO TEIXEIRA em 14/04/2010
Alterado em 01/07/2019
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