Andante,Andante...
"Nenhum momento de felicidade terá sentido se não for compartilhado"
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  UM MOÇO CHAMADO TIBÉRIO

05/11/2011
A faxina de sábado corre à solta na vila operária das indústrias Mello.
Num sopé de montanha não muito distante da cidade pouco mais de 40 casas,todas nas cores azul e amarelo, padrão da empresa,encaram-se na ruazinha estreita rescendendo à cera de carnaúba e óleo de peroba.
O vento fresco carregando ares de serra passeia pelos varais agitando roupas ainda molhadas.
Rádios em sintonias diferentes escancaram na manhã de sábado uma confusa mistura.
Ajoelhadas , esfregando o chão ,mulheres cantarolam, aumentando ainda mais o alarido infernal.
Vasa pelas janelas um cheiro de feijão cozido,temperado a alho e louro.
Dona Maria,calma e sonhadora,na casa dos 80 anos,observa a paisagem sentada na varanda do número 3 enquanto enxuga no avental a emoção dos últimos capítulos de "Olhai os lírios do campo" embaçada nos óculos.
É a quinta vez que relê o romance,e corta-lhe ainda o coração a trajetória de doutor Eugênio e o sofrimento de Olívia.
Uma nuvem de poeira e ácaros ergue-se do tapetinho abanado no portão da casa de número 17.
[ Endereço de maior destaque na vila]
Mora ali,dona Mercedes.
Uma espécie de liderança na comunidade.Nada lhe passa despercebido;à tudo observa,à tudo controla,em tudo dá os seus palpites.Apesar  de tudo, preserva ainda um lado bom:Está sempre disposta a ajudar quando solicitada.
"Sou uma servideira!"
Auto apregoa-se. Sua marca registrada é a cuia de chimarrão mantida sempre à mão.
Põe-se à espreita de quem cruze à sua frente para confidenciar os últimos acontecimentos,aos quais costumeiramente tempera com generosas pitadas de exagero.
A ponta dos pés sobre um monte de tijolos e o pescoço esgueirando-se sobre a cerca de ripas,ela agora interroga a vizinha ao lado:
O que vamos ter para hoje ?...Vi que acendestes a fornalha logo cedo !?...
_Coisinhas  simples,como  sempre,responde a vizinha.Alguns pães de forma e ,pra variar,um bolo de laranja.Tudo,como de costume dona "Merce!.
_Bolo de Laranja?!...Uahau !!!
Surpreende-se Mercedes,fechando os olhos e balançando levemente a cabeça.
_Vais receber visitas?
Não está previsto,diz a vizinha,mas é provável que apareça alguém neste domingo.
_Considero-me, desde já ,convidada para o café !
Profere  a imprudente em tom de entusiasmo.Adoro bolo de laranja...Ah! e não se esqueça da cobertura com chocolate, muito chocolate.
Use-o de boa marca,que é pra ficar mais delicioso.Aquele "Do Padre",dizem ser excelente.Também,pudera! É  da  Nestlé.Só  pode  ser coisa boa.
E assim vai seguindo-se a rotina na vila operária.Dona Maria lendo seus romances,as vizinhas lavando,passando, cozinhando...Mercedes controlando vidas...
E por falar em controlar vidas,eis que surge no começo da rua o jovem Tibério.Talvez seja ele, o único à quem Mercedes não perdoa.Morador na última casa ao lado direito da ruazinha é o típico exemplo de bom rapaz. O quarto de uma família de 9 irmãos.Batalhador,ordeiro e extremamente cordial,teve um breve namorico com a filha mais nova de Mercedes.Nada muito sério,segundo
ele...Um sérissimo compromisso aos olhos da mãe da moça que encabeçou uma campanha contra o infeliz,assim que deu-se o rompimento do namoro.
A implicância ficou ainda maior quando descobriu que Tibério estava apaixonado por uma certa "galega",em suas palavras,que residia numa cidade proxima.
Sordidamente foi arrebanhando para o seu eleitorado a maioria das vizinhas daquela rua.
Assim,Tibério,sujeitava-se a ouvir toda sorte de impropérios e batidas de janelas a cada vez que cruzava a ruela.Sòmente a sua calma e paciência eram capazes de faze-lo engolir calado os "Lá vai ele !...","Vais visitar a quenga ?"..."Trocar moça de familia por biscate da cidade grande,francamente !..."Até mesmo seu Juvenal,esposo de dona Maria,beirando os 90 anos,sempre sentadinho em frente ao armazém da "Polaca",tinha-se bandeado para a turma de Mercedes.Tibério que acabara de passar por ele,educadamente o cumprimentara-lhe:
_Bom dia seu Juvenal,como tens passado?
Cínico,o velhinho lhe responde amistosamente e, erguendo levemente a aba do chapéu com o cabo do inseparável cachimbo,
assim que Tibério vira-lhe as costas,o aliado de Mercedes,resmunga numa voz quase sussurrada:
_Bundiiiinha!....Vai ! Bundinha ! Corre atrás da tua quenga, Corre!....
Tibério atravessa aquele corredor da morte carregado de sacolas.São roupas novas,presentes,compras de supermercado...Reconhece não ser muito bem quisto,não compreende o porque,mas... perdoa.
É pessoa do bem e , agora membro de uma igreja evangélica,sente-se "um homem de Deus" e aprendera a grandeza de perdoar, de oferecer a outra face...Segue em pensamentos, arquitetando uma maneira de sair na manhã de domingo para tomar o trem que o levará até a cidade de sua amada sem que tenha de sujeitar-se àquele calvário.Apesar de sair muito cedo,ainda assim poderá dar de encontro com alguém;Deus me livre de dona Mercedes ! Pensa ele.
Decide que sairá pelos fundos da casa,Assim a possibilidade de ser flagrado será remota.
Manhã de domingo.
Tibério abre a janela.
Uma faixa avermelhada na linha do horizonte insinua-lhe a grandeza de um dia maravilhoso à seu dispor. É ainda muito cedo,mas é preferível um chá de cadeira na sala de espera da estação ferroviária a ouvir os burburinhos maldosos das futriqueiras que lhe cercam.
Banho tomado,ajeita o colarinho,escolhe uma gravata,confere a pequena mala...Tudo de acordo,sai vagarosamente pelo quintal.O silêncio da manhã é entrecortado pelos galos ainda empoleirados.Atira a mala e pula a cerca.O orvalho da manhã umedece-lhe os sapatos e a barra das calças causando-lhe um certo desconforto,mas... Há que submeter-se a este sacrifício.Percorre a fileira de casas cujos quintais divisam com o pequeno riacho.Nem se dá conta de que agora está  cruzando o quintal da casa de número 17.Uma pequena valeta surge-lhe à frente.Fétida e encoberta pelo mato viçoso.O espaço entre as margens não lhe parece atingir além de um metro.Tibério atira a mala para o outro lado,impulsiona o corpo e pula.
Ao atingir a outra margem , escorrega em seu sapato novo,tenta agarrar-se aos arbustos e não consegue.Desiquilibrado, cai sentado na mal cheirosa valeta.
Naquêle instante,maldiz em pensamentos todas as gerações da raça humana.Terá de voltar,trocar-se...Irá se atrasar,pensa , enquanto chafurda ainda mais na lama tentando reeguer-se.
Naquele silêncio fresco da manhã,uma voz conhecida soa do alto.
_"Vai viajá !...éh !?..."
Levanta os olhos e divisa os cambitos de Mercedes ,feita uma galinha de Angola,espetada na cerca do quintal.Àquela hora,de cuia na mão,um sorrisinho sarcástico no canto da boca,uns matinhos na outra mão a simular a capina dos canteiros.Tudo para despistar a vigilância cerrada que faz ao pobre rapaz
à quem tomara como seu refém.
Esquecido de seus princípios morais e religiosos,Tibério agora planeja matar Mercedes,cortá-la em tirinhas bem finas,besuntá-las ao lôdo de onde acabara de sair.
Mas retoma os ensinamentos que aprendera,respira fundo e volta para casa.Banha-se,troca de roupa e agora sim;irá desafiar a ruazinha funesta.
Nada mais lhe deterá,nada mais poderá surpreende-lo.
A manhã ainda não raiara de todo.O clarão avermelhado na linha do horizonte,agora mais vigoroso,abre-se em cortina para o espetáculo do sol.Será um lindo dia,pensa enquanto caminha...A ruazinha recende ao aroma cítrico de Lancaster com o que encharcara-se,literalmente,para tirar a inhaca da valeta mal cheirosa.
Silêncio profundo.
Poderia agora seguir tranqüilo,aquela paz sugere-lhe uma verdadeira ode à liberdade.
Casa de número 17...
Como já  é de costume,um certo calafrio lhe percorre a espinha.Olha ao seu redor.As janelas fechadas encorajam-lhe a seguir tranquilo.
[ A megera deve ter adormecido,certamente aquela cabeçinha maldita é neste instante uma solene hospedeira de sonhos festivos a comemorar a sua vitória.Pensa com seus  botões ]
Mal acaba de concluir o raciocínio e novamente a conhecida voz: tétrica, medonha !...Soa agora na varanda,vem por detrás das samambaias enfileiradas  em vasos que pendem do teto.
É ela !...A Merecedes !...
_Apresse o paaaaasso! (num tom ligeiramente musicado),corre o risco de perderes o treeem.
Vai cheirosão !...Piuí...Piuí...Piuí...


Ele nada responde.Encara-lhe tão somente,com um sorrisinho sem graça.
Pelo casario,aqui e acolá,respingam as primeiras luzes,abrem-se as primeiras janelas....
Tibério vislumbra a montanha de um verde quase cintilante agasalhada à fina organza da neblina.Sobem do riacho vapores diáfanos,embrenhado-se por entre os troncos e ramagens.
Cantam sabiás ! O ar da manhã carrega uma doce pureza que lhe reconforta o espírito.Está de bem consigo mesmo e isso é o que realmente importa.Em passos largos ganha o que ainda lhe resta da ruazinha
e  a estação não está muito longe  dali.
Mercedes, amargando a derrota, traga um gole de chimarrão.
O ruído da água quente subindo pela bomba provoca o efeito sonoro de uma forte trovoada.
Tibério é uma  figura serena e cheirosa cerzindo  a estradinha  que  leva  à estação.


Texto  reeditado.Preservados os comentários ao texto anterior:


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08/11/2011 16:41 - YARA FRANÇA
Todo povoadfinho, tem essas fofoqueiras de plantão. Acho até q são fabricadas em série e distribuídas pelo Brasil afora como 'Gestores de Controle da Vida alheia'. Tadinho do Tibério.

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07/11/2011 14:53 - Lisyt
Sua narração é cheia de encanto. Descreves o cenário com perfeição.Os leitores sentem-se envolvidos pelo clima da história, do principio ao fim. Lindo!

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07/11/2011 09:19 - Teca
O conto é a vida em seu talento sendo versada, e a imagem? LInda!!! Um abraço.

06/11/2011 02:53 - Chico Chicão
A vida como ela é sem rodeios.Somos todos iguais,sempre com uma D.Mercedes ao lado.Brinca no ar a emocão do tudo sempre igual.Joel do Paraná,de Irati,do mundo,da vida,continua a escrever para nos presentear com delícias de leituras.Obrigado.Fique na paqz!

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05/11/2011 19:00 - Anita D Cambuim
Bom conto, você tem o dom de prender e encantar o leitor do início ao fim. Boa noite,Joel.

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05/11/2011 18:03 - Lenapena
leia onde está escrito igual, Sinal. desculpe.

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05/11/2011 17:53 - Lenapena
Essa foto com que você ilustrou seu conto. É o retrato perfeito da minha vila de infância (O Monjolinho) Que por igual ao seu conto também era uma vila de operarios da industria de papel. E tinha também casas semelhantes. E como no conto tinha uma dona Mercedes, so que de nome Dona Angelina. Eita, como tomava conta da vida alheia, valha-me Deus, rs. Adorei o equilibrio de Tibério. Um abraço

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05/11/2011 17:46 - XANA TOP MODEL
UM CONTO PERFEITO E LINDO DE SE LER.. BJS ADOREI
IRATIENSE THUTO TEIXEIRA
Enviado por IRATIENSE THUTO TEIXEIRA em 16/11/2018
Alterado em 16/11/2018
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